segunda-feira, 16 de julho de 2007

Catulo e a poética do cotidiano romano

Paulo Martins

Quando o poeta e crítico norte-americano Ezra Pound (1885-1972) produziu seu “paideuma” (mini-antologia de poetas de todos os tempos) em sua obra ABC da Literatura, aponta apenas Catulo, Propércio e Ovídio como sendo, entre os poetas latinos, aqueles que deveriam ser lidos. Afora a arrogância de Pound, que menospreza a latinidade em nome de uma “superioridade grega” na literatura, pode-se concordar com ele no sentido de que realmente Catulo é um poeta a um só tempo inovador e habilidoso no manejo do poético seja sob o ponto de vista da métrica, seja sob a ótica da matéria. Nada de semelhante à sua poesia havia sido feito no mundo grego, tampouco no latino.
Nascido em Verona (87 a.C.), Catulo surge no mundo cultural romano no final da república romana, isto é, aquele período conturbado da história que culminou com o fim das guerras civis e com advento de um novo modelo de governo centrado na figura de um “princeps”, um imperador. Este momento cultural, por sua vez, é marcado por uma disputa no âmbito do gosto literário que tem, de um lado, nomes como o de Cícero (106 - 43 a.C.), defendendo o resgate das tradições literárias romanas mais antigas e, de outro lado, Catulo, re-propondo uma nova forma de fazer poético, calcada mormente no reaproveitamento do material poético arcaico grego (Safo de Lesbos é essencial), associado a poetas do período helenístico, ou melhor, a uma poética alexandrina cujo expoente máximo é Calímaco de Cirene (310 – 235 a.C.) – bibliotecário de Alexandria.
A geração de Catulo, por sua ousadia e, por que não dizer, por sua capacidade inventiva e inovadora, recebe de Cícero o apelido de “neoteroi”, os neotéricos, substantivação do adjetivo grego no superlativo “os mais jovens”. Este fato que entre nós, pós-modernos, soaria como elogio; para eles, romanos, entretanto, era tido como algo pejorativo: os “jovenzinhos” - pessoas que, por não atentarem para as tradições civis de Roma e por não se ocuparem de temas menos virtuosos e valorosos, não poderiam ser considerados sérios ou ser levados em consideração. Porém, para nós, hoje, há uma dúvida: que tipo de transgressão poética poderia produzir tamanha reação do status quo romano do período?
Pode-se dizer que Catulo inova e, portanto, transgride tanto na forma como no conteúdo. Quanto ao primeiro caso, o poeta inicia seu trabalho desconsiderando a tradição métrica latina do verso satúrnico e se debruça sobre a adaptação da tradição da métrica helênica arcaica para a língua latina, isto é, importa modelos métricos gregos e os adapta à língua latina, recuperando, pois, um enorme manancial formal da tradição. Por outro lado, mais valiosa do que essa contribuição formal é a introdução na península itálica de novos temas e motivos, não mais centrados na tradição arcaica grega, tampouco na latina do período, antes, entende que a tradição helenística da temática poética é mais livre e moldável à fruição literária.
De maneira geral, essa nova poesia latina passa a considerar todo e qualquer assunto como motivo para poesia, desde um simples convite para o jantar até um lamento pela morte de um amigo, passando por convites amorosos e chegando a mais baixa agressão - poemas de invectiva - ou a mais elevada demonstração de erudição. Assim, Catulo, ao compor seu único livro que contém 116 poemas, além de pragmaticamente alterar o rumo da composição poética, dá-nos a chave de seu trabalho a partir do uso sistemático de uma metapoesia, ou seja, valoriza recepção de seus poemas, alertando o leitor sobre quais aspectos devem ser atentados na leitura, por terem sido esses mesmos, o ponto de partida para sua composição. Logo no primeiro poema do livro, uma dedicatória, ele alerta a um interlocutor, Cornélio, que seu “livrinho” (libellum) é gracioso e novo, pois esse Cornélio valorizava suas ninharias (nugae), além de indicar uma possibilidade de perenidade de seu trabalho ao propor que, talvez, seus poemas durassem mais de um século. O uso de diminutivos “livrinho”, “novinho”, ou ainda, a indicação de pequenez dos textos com o uso do substantivo “ninharias ou nugas”, além de apontar para a ruptura poética do período como vimos, reafirma um projeto poético de matiz helenístico que por ser inclusivo quanto aos assuntos tratados e quanto à forma, dedicado aos fatos mais limitados da vida, aproxima-se de algo extremamente moderno - a poesia fundada nos assuntos cotidianos:

“A quem dedico esta graça de livro
novinho em folhas recém-buriladas?
A ti, Cornélio, pois tu costumavas
Ver uma coisa qualquer nestas nugas (...)” *
(poema 1)

Essa poética do cotidiano vale-se da construção sistemática de personagens, que durante muito tempo foram consideradas verdadeiras, isto é, reflexos de realidades biográficas. Os comentadores se esqueceram de que, em Roma, a poesia era dissimulação e, portanto, todas as “pessoas” citadas nos textos eram lidas, no período, como ficções. Algo muito próximo, portanto, de Fernando Pessoa quando afirmava: “o poeta é um fingidor...”. Mesmo quando Catulo se refere a si mesmo, devemos ter em conta que essa referência é ficcional, invenção poética:

Jantarás bem, Fabulo, em minha casa,
muito em breve se os deuses te ajudarem,
se contigo levares farto e bom
jantar, e não sem fina artista, vinho,
graça e as risadas todas. Isso tudo,
se levares, encanto meu, garanto,
jantarás bem, pois teu Catulo tem
o bolso cheio de teias de aranha.
Em troca aceitarás meros amores
e o que há de mais suave ou elegante,
pois um perfume te darei que à minha garota
Vênus e os Cupidos deram,
que ao sentires aos deuses vais pedir
te façam, Fabulo, todo nariz.
(poema 13)

O tom jocoso deste tipo de composição é sistemático em Catulo. Inúmeros poemas apresentam este tipo de tratamento quase cômico de uma circunstância insólita que neste caso específico é a falta de dinheiro associada à gentileza de ter a companhia de um amigo no jantar e, mais, a contrapartida à dedicada amizade, ao oferecer um presente divino: um perfume dado à sua amada por Vênus e os Cupidos. O mesmo tratamento pode ser observado, por exemplo, no poema 26 em que o “eu lírico” fala acerca de uma hipoteca de uma pequena vila romana de um certo Fúrio. Catulo propõe que a mesma vila, por ser diminuta (como sua poesia e seus respectivos assuntos), não recebe vento algum, nem o do sul, nem o do oeste, nem o do norte e nem, tampouco, o do leste, porém um outro tipo “vento” a atinge em cheio, o da hipoteca, que seria feio e pestilento. Vale lembrar que esse vento em latim é nomeado pela palavra flatus, palavra que em português veio dar flatulência:

Fúrio, teu sitiozinho não recebe
o vento sul nem o que vem do oeste
nem o do norte, frio, nem o do leste:
recebe uma hipoteca de quinhentos.
Ah!, mas que vento feio e pestilento!
(poema 26)

O livro de Catulo, assim delimitado e observado, portanto, poderia sugerir mesmo para nós uma certa insignificância. Afinal de contas, tratar de jantares ou sítios hipotecados poderia sugerir realmente uma falta de traquejo poético elevado, afinal poesia é algo “sublime”. E realmente, ele deve ter sido, amiúde, acusado por ter cometido poemas com certa impropriedade, tendo respondido aos seus detratores com o verso: “A um poeta pio convém ser casto//ele mesmo, aos seus versos não há lei” (poema 16). Mas, há de se observar que estes poemas fazem parte de um todo em que outros assuntos mais nobres também são tratados, como a morte ou o amor:

Por muitos povos e por muitos mares vindo,
Chego, irmão, a teu túmulo infeliz
Para última dar-te dádiva de morte
E só falar à muda cinza em vão
Pois a Fortuna tolheu-me de tudo que foste,
Ah! Triste irmão tão cedo a mim roubado!
Agora o que por longa tradição dos pais
Ao túmulo se traz – dádiva ingrata –
Aceita em muito choro fraterno banhada.
E para sempre, irmão, olá e adeus.
(poema 101)
ou

Odeio e amo. Talvez queiras saber “como?”
Não sei. Só sei que sinto e crucifico-me.
(poema 85)

Na verdade, o falar de amor, ou melhor, a fala do Amor, talvez, tenha sido a principal temática de Catulo. Percorre o livro, como um todo, um “romance” entre o “eu poético” e uma Lésbia, nome que nos sugere referência poética ou simplismente uma relação entre o poeta e a poetisa de Lesbos, Safo, lembrando, contudo, que ambos estão distantes alguns séculos. Curiosamente, a despeito da temática elevadíssima, o tom com que estas poesias são construídas vai se alterando, simultaneamente, à alteração da relação amorosa. Tamanha é a veracidade com que o poeta dá conta desta modificação de sentimento que esta série de textos foram lidos como “a mais sincera e pura expressão de um sentimento verdadeiro”:

Vamos viver, minha Lésbia, e amar,
e aos rumores dos velhos mais severos,
a todos, voz nem vez vamos dar. Sóis
podem morrer ou renascer, mas nós
quando breve morrer a nossa luz,
perpétua noite dormiremos, só.
Dá mil beijos, depois outros cem, dá
muitos mil, depois outros sem fim, dá
mais mil ainda e enfim mais cem – então
quando beijos beijarmos (aos milhares!)
vamos perder a conta, confundir,
p’ra que infeliz nenhum possa invejar,
se de tantos souber, tão longos beijos.
(poema 5)

Célio: nossa Lésbia, aquela Lésbia,
Lésbia, aquela, única que Catulo
Amou mais que a si e os seus,
Agora nos becos e encruzilhadas
Descasca os filhos de Remo magnânimo.
(poema 58)

Lésbia só fala mal de mim, sempre, e não cala
Nunca; que eu morra se ela não me ama.
Como sei? Também tenho tal sintoma; ataco-a
Muito: que eu morra, sim, se não a amo.
(poema 92)

Os três poemas acima marcam três momentos distintos do “amor” entre Catulo e Lésbia. O primeiro é um convite ao ensejo amoroso, que desnuda o sentimento em relaçãoaos mais velhos (“velhos severos”). O menosprezo às tradições romanas no âmbito literário transfere-se para o universo moral e até mesmo sentimental. O que causa espécie neste poema, é a temática da efemeridade da vida – uma leitura do lugar comum do carpe diem, associado à hipérbole do efeito do amor: o beijo. Assim, se, de um lado, o que os velhos pensam do romance não vale muito (“aos rumores... voz nem vez vamos dar”), de outro, o desejo da troca de beijos projeta-se ao infinito.
Já o poema 58 revela a invectiva mordaz do amante em relação à amada, tendo uma terceira personagem como testemunha (Célio): a mesma amada tão desejada outrora se torna alvo de maledicência. A tradição literária de viés romântico sistematicamente expurgava este poema de forma curiosa, pois que, em suas traduções para as línguas modernas, o verbo que introduz o último verso não era traduzido. E se desejássemos saber qual era seu significado os dicionários mais antigos ao invés de nos dar uma tradução apresentava o verbo em grego. Assim o termo ficava sem tradução. “Descascar” nesse caso significa uma prática sexual violenta, algo como debulhar o milho com os dentes. Vale dizer que a hipérbole do poema anterior era utilizada como recurso valorativo do amor, neste poema se mantém, no entanto de forma pejorativa, afinal Lésbia descasca os filhos de Remo, isto é, simplesmente todos os romanos.
Ao fim e ao cabo, a relação amorosa é, de certa maneira, apaziguada no poema 92, uma vez que “Catulo” assume seu amor e aposta no amor de “Lésbia”. Todas as desavenças estariam sanadas, pois o “ódio” destilado nos poemas seria apenas uma resposta ao desprezo que poderia vir a ser superado, constituindo abertura ao desfecho positivo desse caso de amor.
Catulo, dado aos elementos que observamos, portanto, pode ser considerado, em termos clássicos, uma vanguarda e, isto, se comprova a partir do nome que seu grupo recebeu de Cícero, porém, agora, reciclado positivamente em latim: poetae noui, poetas novos. Ele é de fundamental importância para a Literatura Latina, uma vez que poetas do calibre de Ovídio e Propércio (uma geração mais tarde) explicitamente se colocam numa posição de devedores de sua poesia, não só quanto à forma, mas também, quanto ao conteúdo. Quem sabe pudéssemos propor que Catulo mais do que um dos poetae noui, devesse ser chamado de o poeta sempre novo.

* As Traduções usadas neste texto são de autoria do Prof. Dr. João Angelo Oliva Neto da USP.

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